Um filme gótico onde o vampiro é símbolo – e sintoma – de algo bem mais doentio.
Há filmes que passam como vultos, e há filmes que pairam como névoa… Nosferatu (2024), a releitura de Robert Eggers do clássico expressionista de 1922, não apenas retorna das sombras: ele arrasta consigo um cortejo fúnebre de imagens perturbadoramente belas, como se o próprio cinema gótico tivesse despertado do túmulo e pedido uma dança à meia-luz.
Eggers, já conhecido por sua devoção ao horror ritualístico (A Bruxa, O Farol), não apenas recria Nosferatu — ele o ressuscita com reverência de necromante. O filme é um delírio de sombras projetadas sobre paredes úmidas, de silêncios que gritam, de uma paleta de cores pálida como a pele de um cadáver recém desenterrado. A estética visual é um poema mórbido de Álvares de Azevedo, onde cada luz parece implorar por redenção antes de ser engolida pelo breu.
Conde Orlok com seu corpo retorcido, olhos fundidos ao vazio, mostra uma presença que não caminha, mas desliza, tornam o personagem mais que um vampiro. Ele é a própria encarnação da peste, da obsessão, do desejo doentio que corrói lentamente as almas ao redor.

E aqui vale o aviso: o “desejo” que o filme insinua não é exatamente do tipo que se conta numa roda de amigos. Há algo de desconfortavelmente necrofílico e, por que não dizer, pedófilo na forma como Orlok observa a Ellen desde a infância — como se a conhecesse desde sempre, mas só aguardasse o momento “certo” para se aproximar. Ah, o clássico predador cultivador, aquele que a sociedade patriarcal adora retratar como trágico romântico. Ele não aparece só à noite por conta do sol — mas talvez também por medo da certidão de nascimento da vítima.
Esse olhar colonial e doentio sobre a juventude feminina — envolto em poesia sombria e figurinos elegantes — é um reflexo direto da estrutura social que suaviza o abuso quando ele vem embalado em estética. Afinal, a romantização da inocência como objeto de desejo é um pilar do gótico… e também do patriarcado. A vítima vira musa. O predador, mártir. E a crítica? Essa, geralmente, chega tarde — muito tarde.
Os demais personagens orbitam como mariposas em torno de uma chama escura. A protagonista feminina, frágil e intensa, carrega nos olhos a promessa de sacrifício — tema caro ao gótico —, e nos gestos, uma recusa silenciosa ao mundo dos vivos. A narrativa não se apressa. E ainda bem. Ela se arrasta com o peso de um luto antigo, construindo tensão com a mesma delicadeza com que se acende uma vela numa cripta.
As comparações são inevitáveis. O original de Murnau era uma sombra projetada em celuloide, a nova versão é uma pintura a óleo feita com sangue seco e cera derretida. O gótico aqui dialoga com o expressionismo alemão, mas também flerta com a sensualidade putrefata dos quadros de Fuseli e a poesia doentia de Baudelaire. Ao contrário dos vampiros galãs que a cultura pop tanto nos empurrou goela abaixo, este Nosferatu não seduz — ele consome. Não ama — obceca. Não beija — fere. E, se ama, é num registro mais próximo de uma devoção por carne fria do que por qualquer calor humano.

Eggers nos oferece, assim, um filme que não apenas homenageia o gênero gótico: ele o reencarna. E como toda reencarnação, há algo de perturbador em reconhecer o velho em nova pele. Nosferatu (2024) não é para quem busca sustos, é para quem aceita caminhar de mãos dadas com a morte — e talvez descobrir que ela tem olhos tristes e intenções… duvidosas.
No final, fica a pergunta ecoando como um sussurro entre as pedras do castelo: quem realmente está vivo nesse filme? E será que importa?
A crítica mais sensata e completa que já li sobre esse filme até agora. Muito bom